Governo manobra para contornar regras fiscais e especialistas veem perda de credibilidade do arcabouço
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Por Bernardo Caram e Marcela Ayres
BRASÍLIA (Reuters) - Diante de restrições do arcabouço fiscal, a gestão Luiz Inácio Lula da Silva passou a implementar saídas criativas para aumentar gastos, além de incorporar receitas ao Orçamento sem a concordância do Banco Central, com especialistas apontando riscos à credibilidade das contas do governo.
Somente do início de agosto até agora, o governo criou sob pressão das redes sociais uma renúncia tributária para medalhistas olímpicos, apresentou modelo para financiar um bilionário vale-gás fora do Orçamento e orientou aprovação no Congresso de medida que incorpora dinheiro esquecido nos bancos como reforço para atingir a meta fiscal -nos três casos em dissonância com normas fiscais vigentes.
'Por um lado tem uma tentativa de flexibilizar regras para cumprir a meta fiscal no papel, mas conseguir gastar mais. E por outro lado, há também um esforço de estimular o financiamento de políticas públicas por fora das despesas primárias via mecanismos de financiamento,” disse o economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes.
“O efeito disso vai ser uma gradativa perda de credibilidade do resultado primário, que vai cada vez menos refletir o esforço do governo de controlar a dívida pública”, acrescentou ele.
Embora tenha lutado por medidas para contrabalançar vultosa desoneração da folha de pagamentos amparado por entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade de compensação, o governo contrariou esse princípio ao isentar medalhistas olímpicos de pagar Imposto de Renda sobre rendimentos alegando não se tratar de renúncia fiscal.
A Medida Provisória do início de agosto foi assinada pelo presidente Lula um dia após a Receita Federal divulgar nota defendendo que os atletas eram tributados sobre seus ganhos “como qualquer outra remuneração de qualquer outro profissional”.
“Uma pedaladinha aqui ou ali pode dar gosto, pode crescer', afirmou um técnico da equipe econômica sob condição de anonimato, criticando a medida por não sequer apresentar estimativa de impacto fiscal conforme determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mesmo envolvendo valores baixos em relação ao total do Orçamento.
O ministério não divulgou o conteúdo de nota jurídica da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional sobre a medida, solicitada pela Reuters via Lei de Acesso à Informação no mês passado, alegando necessidade de “sigilo profissional” para o tema.
Já nota técnica da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados afirmou que a medida está em desacordo com a legislação e ressalta que a LRF não faz ressalva para permitir renúncia de receita de pequeno valor.
Outro episódio envolveu uma divergência entre governo e BC sobre como contabilizar a captação de dinheiro esquecido por correntistas em instituições financeiras, o que pode gerar uma discrepância superior a 8 bilhões de reais entre os cálculos fiscais do Tesouro Nacional e da autoridade monetária.
A iniciativa faz parte do projeto que estabelece o fim gradual da desoneração da folha, com instrumentos para compensar o benefício. Após o BC editar nota apontando que a medida não representaria uma receita primária, o governo propôs e aprovou dispositivo que contraria esse entendimento ao prever que o ganho será contabilizado no Orçamento e ajudará na busca pelo déficit fiscal zero.
Parte de ações empreendidas desde o ano passado também prevê o uso de mecanismos para viabilizar pagamentos de diferentes programas sem que os recursos passem pelo Orçamento, o que não sensibiliza as despesas primárias e, portanto, não ocupa espaço no limite de gastos.
É o caso do projeto proposto pelo governo no fim de agosto para alterar o auxílio-gás a famílias carentes, que permite o repasse de recursos da exploração de petróleo no pré-sal para a Caixa Econômica Federal, que seria responsável pelos pagamentos dos benefícios. Sob críticas, a equipe econômica prometeu revisar a proposta.
Mecanismo similar foi usado na operacionalização do programa Pé-de-Meia, com benefícios a estudantes, que recebeu autorização para repasse de 6 bilhões de reais no fim de 2023 sem impacto no limite de gastos do arcabouço.
Mais recentemente, a Câmara aprovou o uso de recursos do Fundo Nacional da Aviação Civil para concessão de crédito a empresas aéreas junto ao BNDES. A medida depende agora de sanção presidencial.
O governo também tem elevado substancialmente os repasses do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ao órgão público de incentivo à pesquisa Finep, e reciclado o uso de recursos do Fundo Garantidor de Operações (FGO), fortemente abastecido para o enfrentamento à pandemia, e que agora impulsionará empréstimos a microempreendedores.
Procurado, o Ministério da Fazenda afirmou que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional considerou que não havia renúncia de receita na medida que isenta premiações olímpicas, mas não explicou o entendimento. A pasta ressaltou que preza “pela aplicação irrestrita' das regras fiscais 'que garantem a higidez das contas públicas”.
Sobre a captação de dinheiro esquecido em bancos, a Fazenda afirmou que a contabilidade do resultado primário é feita pelo BC e a compensação da desoneração será feita à luz de decisão do STF.
A pasta disse ainda que o projeto sobre o auxílio-gás é de iniciativa do Ministério de Minas e Energia e, da forma como foi proposto, não possui impacto fiscal, mas haverá necessidade de previsão orçamentária no caso de eventual redução de receita com o deslocamento de recursos do pré-sal para o programa.
Na avaliação do ex-secretário do Tesouro Jeferson Bittencourt, economista do ASA, tem se observado uma relativização de convenções, com a implementação de medidas “de maneira alheia” à LRF, subversão de princípios orçamentários e fragilização do arcabouço para as contas públicas.
Ele criticou o uso de fundos privados para a execução de políticas públicas, o que reduz o controle orçamentário, questionando ainda a falta de compensação para o benefício a medalhistas olímpicos e o caminho encontrado para forçar um aumento das receitas com os recursos esquecidos em bancos.
“Agregar um valor (ao resultado primário) apenas para fins de cumprimento da meta não vai alterar nossa posição fiscal, vai apenas tirar credibilidade da meta', disse.
COMBATE A INCÊNDIOS
Somada a essas flexibilizações, decisão proferida nesta semana pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino autorizou a abertura de crédito extraordinário, que não se submete ao limite de despesas e à meta, para combate a incêndios florestais no país.
A legislação prevê esse instrumento em situações de emergência, mas seu uso normalmente é autorizado pelo Congresso sem necessidade de aval do Judiciário e a liberação dada pelo ex-ministro da Justiça de Lula levanta a dúvida se a porta pode ter sido aberta para outras iniciativas do tipo.
Aprovado em 2023, o arcabouço fiscal prevê um crescimento real de até 2,5% nas despesas primárias por ano, mas as contas seguem em trajetória de compressão diante de crescimentos mais fortes de gastos obrigatórios, como os previdenciários e os pisos de Saúde e Educação.
No cenário de aperto nas contas, uma segunda fonte da equipe econômica afirmou que a maior parte das autoridades do governo sabe que a adoção de medidas pontuais de revisão de cadastros e busca por fraudes em programas sociais não é suficiente para manter o arcabouço fiscal de pé nos próximos anos.
“Tem que fazer alguma coisa mais estrutural”, disse, sob condição de anonimato, ao defender a apresentação de propostas de ajuste em programas sociais e trabalhistas ainda neste ano, mas ponderar que ainda é preciso amadurecer as medidas para evitar resistências políticas no PT e dentro do governo.
Desde o início do terceiro mandato de Lula no ano passado, a dívida bruta, indicador-chave da solvência das finanças públicas, aumentou em quase 7 pontos percentuais, para 78,5% do PIB em julho. Enquanto isso, projeções de mercado para o futuro das contas públicas seguem desancoradas, com analistas privados estimando déficit primário de 0,6% do PIB neste ano e 0,75% do PIB em 2025, segundo o boletim Focus do BC.
Escrito por Reuters
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