Como Marvin Gaye transformou a dor em um hino que desafiou a indústria musical
A música que marcou uma era: descubra como 'What's Going On' rompeu barreiras, refletiu as tensões sociais dos anos 70 e permanece relevante até hoje
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O que está acontecendo?
A vulnerabilidade gerada pela eliminação de programas sociais pelo governo, racismo, brutalidade policial, um meio ambiente deteriorado, uma descrença profunda nas instituições e na ciência, fanatismo, paranoia política... Ouvir What's Going On, de Marvin Gaye, hoje é como acompanhar as manchetes atuais.
Um mundo onde a regra é a violência e a exceção é escolher o amor como uma forma de combater o ódio e encontrar um meio termo.
Marvin Gaye, em 1971, fez a pergunta do início do texto. Na época, havia uma descrença tremenda com os avanços sociais nos Estados Unidos e no mundo. A Guerra do Vietnã já durava há 16 anos e dois ativistas dos direitos humanos e líderes importantíssimos do movimento negro norte-americano haviam sido assassinados recentemente – Martin Luther King (1968) e Malcom X (1965). O cantor passava por um momento pessoal difícil, afundado em oceanos de crises envolvendo abuso de substâncias, depressão e um esgotamento geral.
Um ano antes do lançamento de What 's Going On, em 1970, Marvin Gaye havia encerrado sua colaboração com a cantora Tammi Terrell e estava desmotivado com relação a sua carreira. Suas músicas não refletiam a realidade das profundas mudanças sociais que o país estava vivendo. Além disso, o artista vivia em constante conflito com a direção da Motown, sua gravadora, devido às suas aspirações artísticas. Portanto, decidiu fazer um manifesto por dias melhores.
Acontece que, antes deste álbum, Gaye era visto como um símbolo sexual e um galã da gravadora Motown. Ele era famoso por músicas românticas, como “Ain’t No Mountain High Enough” e “Together”, e foi a partir de “What' s Going On” que o cantor tornou-se um poeta social na música. Mais do que isso, o disco foi um divisor de águas na soul music e abriu caminho para um som politicamente franco e liricamente intrincado, provando que a música pop e a consciência social podiam caminhar lado a lado e ainda ser altamente lucrativas. O artista remodelou o gênero como um todo, e a sua gravadora Motown viu um potencial no discurso político-social apresentado.
A faixa vendeu cerca de 2 milhões de cópias e se tornou a segunda música mais bem-sucedida de Marvin para a Motown até os dias atuais. No início do século, também foi classificada como a 4ª posição na lista das 500 Maiores Músicas de Todos os Tempos pela revista americana Rolling Stone.
Diante de todo o reconhecimento que Marvin conquistou, a Motown renegociou um novo contrato, concedendo-lhe o controle artístico sobre seu trabalho. Assim que o acordo foi firmado, ele se tornou o artista negro mais bem pago da história da música. Logo após, Gaye se dedicou a ajudar alguns de seus amigos cujos trabalhos também estavam vinculados à gravadora. Entre eles, Stevie Wonder, que teve sua criatividade liberada graças ao apoio de Gaye.
A faixa-título do álbum foi escrita majoritariamente pelo cantor do grupo Four Tops, Obie Benson. Impactado ao testemunhar um caso de violência policial, ele se uniu ao compositor Al Cleveland, da Motown, para escrever a música. No entanto, os integrantes do Four Tops não se interessaram por canções de protesto. Benson, então, pensou em Marvin Gaye, que acrescentou novos versos à música, inspirado pelas histórias de seu irmão mais novo, Frankie, convocado para a Guerra do Vietnã.
“A polícia estava batendo neles, mas eles não estavam incomodando ninguém. Eu vi isso e comecei a me perguntar que porra está acontecendo. O que está acontecendo aqui? Uma questão leva a outra. Por que estão mandando crianças para longe de suas famílias? Por que estão atacando suas próprias crianças nas ruas aqui?”, disse Benson no livro “What’s Going On: Marvin Gaye and the Last Days of The Motown Sound“.
A partir deste marco, o gênero musical, cuja produção antes consistia em um maior número de singles em compactos de vinil, com o objetivo de tocar incessantemente em jukeboxes e na rádio, passou a receber álbuns conceituais. As músicas de Marvin Gaye se completavam tanto pela temática escolhida quanto pela unidade estética, como se as faixas formassem um medley, emendadas pela mesma batida.
Desde então, muitos artistas beberam da fonte desse álbum , como Aretha Franklin, Stevie Wonder, The Temptations, de obras como Sign o' the Times” de Prince a “Lemonade” de Beyoncé. E, infelizmente, as reivindicações do disco permanecem atuais.
What’s Going On não é somente uma obra-prima cujas águas banham a arte e a política dos dias de hoje, mas um chamado para nos questionarmos do porquê, mesmo 53 anos depois, as suas palavras doem tão intensamente quanto doeram naquela época. E, principalmente, que ela permaneça viva como uma forma de lembrar a todos da força absoluta do amor.
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